Cerca de 400 famílias de trabalhadores sofrem isoladas às margens do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, graças à enxurrada de lama que escoa das duas barragens rompidas em Mariana (MG) na quinta-feira, 5 de novembro.
Questionada sobre a situação dos pescadores, a Samarco disse, em nota, que “adotará as ações necessárias para identificação e mitigação dos impactos e reportará aos órgãos ambientais competentes”.
A mineradora diz ainda que vai “priorizar a assistência à população afetada pelo acidente” e que “está executando um sistema emergencial de monitoramento da qualidade de água no Rio Doce”, com “pareceres técnicos imparciais, de equipe multidisciplinar renomada”. A empresa não informou, no entanto, quando o estudo estará pronto, nem quem faz parte desta equipe.
Após visitar cidades afetadas pelos rejeitos de mineração, nesta quinta-feira, a presidente Dilma Rousseff comentou pela primeira vez a situação no rio Doce.
“O nosso objetivo maior vai ser recuperar o rio Doce. O rio Doce é o sinônimo de vida da região”, afirmou Rousseff, que também anunciou multa de R$ 250 milhões à mineradora responsável pelos vazamentos.
Este valor é criticado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que acompanha famílias afetadas por mineradoras desde 2013.
“A multa não chega à metade do valor doado por mineradoras para campanhas eleitorais no ano passado”, alega a secretária Katia Visentainer, com base em dados públicos relacionados às eleições de 2014.
‘Matou tudo’
No fim da tarde desta quinta-feira, os pescadores da Operação Arca de Noé foram surpreendidos pela notícia de que receberiam reforços.
Uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Espírito Santo e pelo Ministério Público Federal ordenou que a mineradora resgate “a maior quantidade possível” de peixes nos municípios de Baixo Guandu, Colatina e Linhares, no Espírito Santo, antes da chegada da lama do rio Doce – o que deve acontecer nos próximos cinco dias.
Durante toda a semana, a BBC Brasil acessou fotos, vídeos e mensagens de áudio compartilhadas por pescadores em grupos no WhatsApp, ferramenta usada pelos ribeirinhos para denúncias e convocações.
As imagens mostram peixes cobertos de barro saltando em busca de oxigênio, grandes cardumes mortos boiando rio de lama abaixo e pilhas de animais em decomposição se acumulando nas margens.
Apesar destes indícios, a Samarco disse à reportagem que a lama é composta por “material inerte e não perigoso” e que “não apresenta riscos à saúde pública e ao meio ambiente”.
Mas um pescador não-identificado diz em uma gravação feita em Colatina, município que decretou estado de calamidade pública: “Quem puder (deve) ir para o rio para pegar a maior quantidade de peixes possível, de rede, de qualquer jeito, e soltar nas lagoas. A informação que tem é que vai morrer tudo”.
O administrador José Francisco Silva de Abreu, presidente da Apard (Associação dos Pescadores e Amigos do Rio Doce), vive em Governador Valadares (MG), onde a lama, nas palavras dele, “sim, matou tudo”.
“Eu apoio o mutirão para transferir os peixes. Fomos pegos de surpresa quando a lama chegou aqui, não deu nem para se preparar”, diz. “A gente via a agonia dos peixinhos até a morte. Digo com tranquilidade que hoje não resta um único ser vivo ali dentro.”
O professor de recursos hídricos Alexandre Sylvio Vieira da Costa, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, vem acompanhando a evolução da lama em Governador Valadares e atesta a impressão do pescador.
“Todas as plantas aquáticas que dão base ao ciclo biológico do rio morreram com a chegada esse rejeito, composto basicamente de ferro, alumínio e manganês. A água fica mais densa e o oxigênio não consegue se misturar”, explica. “Por isso não sobrou nada. Nem caramujo. Toda a vida aquática do rio Doce em Valadares morreu.”
O especialista diz que é preciso esperar a passagem da lama terminar para fazer estimativas sobre sua recuperação, mas poupa sinais de otimismo. “Eu não daria menos de dez anos para este rio começar a se estabelecer novamente.”
Costa lembra que ainda há “muita lama” acumulada na região de Mariana. “Se chover muito naquela cabeceira, mais material vai descer, mais material vai ser depositado e mais o rio vai morrer.”
Manual de sobrevivência
O volume despejado após o rompimento das barragens do Fundão e de Santarém, em Mariana, equivale a 25 mil piscinas olímpicas.
Após cidades como Colatina e Governador Valadares decretarem estado de calamidade pública, um “Manual de Sobrevivência na Crise” foi criado por movimentos sociais para auxiliar moradores a se adaptarem a restrição hídrica – em Valadares, por exemplo, 100% da água encanada vinha do rio Doce.
A cartilha traz orientações sobre armazenamento de água, reutilização e sugestões para economia de água em tarefas domésticas. “Entendemos que, sem abastecimento na rede, o material será bem útil para as pessoas lidarem com essa nova realidade de utilização da água”, diz Katia Visentainer, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que também disponibilizou o material para download.
Para Abreu, da associação dos pescadores do rio Doce, a única maneira de recuperar o rio é proibir a atividade pesqueira pelos próximos cinco anos. “Só nos restam os afluentes, eles é que poderão recuperar, um dia, a saúde do rio”, diz.
A reportagem questiona: e o que acontece com as 400 famílias de pescadores que existem na região até lá?
“A nossa perspectiva é de que a pesca extrativista se exauriu”, diz Abreu. “A demanda é maior do que o rio pode oferecer e a cidade importa peixes para consumo. Então a melhor alternativa é capacitar os pescadores para que eles se tornem piscicultores e criem seus peixes em quantidade, em vez de depender do rio.
“Já estávamos desenvolvendo este projeto e a tragédia no rio Doce torna tudo ainda mais urgente.”