Cannabis medicinal: decisões judiciais para obrigar fornecimento saltam 377,9% e estimulam leis para inclusão no SUS; entenda

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A alta de decisões judiciais que obrigam o poder público a garantir o fornecimento de produtos terapêuticos à base de Cannabis tem motivado a criação de leis estaduais para inclusão dos fármacos no Sistema Único de Saúde (SUS). Levantamento feito pelo GLOBO com alguns dos estados mais populosos do país e com números do Ministério do Saúde mostra que foram gastos cerca de R$ 40 milhões em 2023 até outubro para atender os pacientes.

Em âmbito federal, dados mais recentes contabilizados pela pasta da Saúde mostram que somente no primeiro trimestre foram gastos R$ 767.906,84, um aumento de 377,9% em relação ao contabilizado durante todo o ano de 2021 (R$ 160.690,14). No ano passado, o montante já havia chegado a R$ 1.671.701,58, valor que deve ser ultrapassado em quase duas vezes em 2023.

Nos estados, o levantamento do GLOBO com as unidades da federação mais populosas mostra que, até outubro, foram destinados ao menos R$ 39,1 milhões até outubro – de acordo com dados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Santa Catarina, Minas Gerais e Espírito Santo. Apenas o estado paulista responde por R$ 25,6 milhões. Procurados, Paraná, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará e Pará não informaram os valores.

“Temos uma legislação que permite importar, mas não permite o cultivo para produção no país. Então na prática o custo é pouco acessível, e a pessoa que não tem uma condição financeira confortável fica privada do acesso. Diante desse cenário, a judicialização é uma forma de garantir esse acesso mediante custeio público”, explica Natan Duek, advogado membro da Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OAB-RJ e mestre pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

O 2º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, elaborado pela empresa de dados do universo canábico Kaya Mind e publicado neste ano, estima que o montante despendido pela rede pública em todo o país pode chegar a R$ 80 milhões até o fim do ano, considerando todos os estados.

“Nós ainda temos casos de loteria judicial. Alguns juízes têm insegurança em proferir sentenças favoráveis ao acesso. Mas isso tem reduzido muito. Boa parte dos pacientes tem conseguido, desde que cumpra os requisitos. Não basta a prescrição, precisa haver uma explicação detalhada do médico mostrando que os tratamentos protocolares já foram tentados e que há evidências para o uso da cannabis”, afirma Henderson Fürst, advogado especialista em direito e saúde do escritório Chalfin Goldberg Vainboim e presidente do Conselho de Bioética e Biodireito da OAB – SP.

Além daqueles que obrigam o fornecimento do produto, há ainda os casos de decisões judiciais que permitem o paciente, ou associações de famílias, a cultivarem a planta – o que é proibido no Brasil desde 1938 – para extrair o óleo e utilizá-lo com finalidades terapêuticas.

“A exposição de casos semelhantes têm levado a um aumento na procura por esse direito. É difícil estimarmos com precisão, mas imaginamos algo por volta de 2 a 4 mil casos de habeas corpus para o cultivo. São medidas importantes individuais para agora, mas não é a solução a longo prazo”, diz Duek.

A demanda em alta pelos medicamentos do tipo e as decisões judiciais têm levado estados a avançarem na criação de leis que incluam a modalidade terapêutica na rede pública – ainda que a regulamentação delas e a implementação na prática tenham se mostrado um novo desafio.

O tema ganhou força depois que São Paulo, maior estado do país, com cerca de 44,4 milhões de habitantes, sancionou uma lei do tipo. Mais recentemente, o Rio de Janeiro e o Espírito Santo também passaram legislações semelhantes, e leis parecidas são encontradas em locais como Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, entre outros.

Em âmbito nacional, o Ministério da Saúde diz que “até a presente data, não há protocolado na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), pedido para análise de incorporação, no âmbito do SUS, do canabidiol, para quaisquer indicações, seja por parte das empresas fabricantes ou qualquer outro demandante”.

Mas ressalta que o SUS é tripartite, e estados, assim como municípios, podem “dispensar tecnologias em saúde que não estejam nas listas federais”. As leis estaduais, no entanto, ainda não se traduzem numa realidade. Os desafios passam pela falta de padronização dos produtos à base de Cannabis e pela delimitação de quais diagnósticos poderão ser atendidos.

“Não estão regulados. É o caso de São Paulo, em que a lei foi muito celebrada, mas o decreto de regulamentação ainda não veio, então ainda não tem efeito. Essa é a pior opção do estado, porque quando depende da judicialização a secretaria tem que correr e comprar no preço de mercado, pagando valores muito mais altos. Se fosse adequadamente regulado, seria possível fazer licitação, avaliação de preços, ter em estoque, teria uma sensível economia aos cofres públicos”, diz Fürst.

Em nota, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (SES-SP) diz que o decreto de regulamentação da lei foi “tecnicamente finalizado pela pasta e está em avaliação juntamente com a Casa Civil”.

Falta de padronização interfere no acesso

Uma das questões que interferem na regulamentação das leis é a não padronização dos produtos à base de Cannabis no Brasil – classificação criada pela Anvisa em 2015 quando passou a permitir a importação individual de terapias do tipo mediante prescrição médica. Com o tempo, farmácias também passaram a ser autorizadas a comercializarem uma lista com algumas dezenas de fármacos aprovados.

No entanto, os itens importados são óleos e outras formulações extraídas da Cannabis sativa que apresentam concentrações distintas do canabidiol (CBD) e do tetrahidrocanabinol (THC), duas das centenas de substâncias produzidas pela planta.

A maioria desses óleos, embora de fato possam auxiliar no tratamento de determinadas condições, não têm indicação clínica específica e não passaram individualmente por ensaios clínicos rigorosos – motivo pelo qual são enquadrados como “produtos de cannabis”, e não como remédios, pela Anvisa.

“O termo Cannabis medicinal refere-se a produtos derivados diretamente da planta. Você pode ter preparação de óleo, cápsulas, pomadas, vários produtos que vem diretamente da planta. Aqui no Brasil temos muitos produtos que são utilizados no contexto de uso compassivo mediante prescrição médica”, explica Rafael Guimarães dos Santos, professor do departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto FMRP USP e pesquisador do Centro de Pesquisas em Canabinoides da FMRP-USP.

Ele esclarece que há algumas opções de fato desenvolvidas por farmacêuticas que usam o CBD puro, como o Epidiolex, para epilepsia infantil, e o Mevatyl, para tratar rigidez muscular e espasmos associados à esclerose múltipla, mas costumam ter custos elevados. O Mevatyl, segundo a tabela de preços máximos ao consumidor, pode ultrapassar R$ 4 mil.

Por isso, o acesso ao tratamento é feito principalmente com os óleos importados. De 2015 para cá, dados compilados pela Anvisa a pedido do GLOBO mostram que já foram concedidas mais de 269 mil permissões para importação. Apenas em 2023 até outubro, já foram 114.782 autorizações, uma alta de 73,4% em comparação com o mesmo período do ano passado.

Métodos de acesso à cannabis medicinal no Brasil. — Foto: Arte O Globo

Benefícios da Cannabis medicinal

Outro ponto importante na inclusão dos produtos na rede pública é quem poderá acessá-los. Os especialistas em saúde ouvidos pelo GLOBO defendem a incorporação, mas com o devido cuidado para contemplar apenas patologias que tenham um benefício comprovado.

Em São Paulo, o comitê responsável pela regulamentação da lei definiu que as três primeiras doenças serão Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Esclerose Tuberosa, patologias raras que causam quadros de epilepsia. A pasta diz, porém, que segue avaliando a possibilidade de ampliar os quadros “com base em análises, discussões e evidências clínicas”.

“As duas áreas da medicina que estudam muito a cannabis medicinal são a neurologia e a psiquiatria por causa do efeito no sistema nervoso central. O que temos mais evidências de fato é para esses tipos raros de epilepsia em crianças que são genéticos e de difícil controle”, diz Adalberto Stuart Neto, secretário do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e médico do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

Ele afirma ainda que o canabidiol tem se mostrado eficaz para os sintomas musculares da esclerose múltipla, náuseas e vômitos ligados à quimioterapia e para o tratamento de dores crônicas refratárias.

“Todos esses compostos de forma geral agem no sistema endocanabinoide. Da mesma forma que temos o sistema opioide endógeno, em que as endorfinas, por exemplo, agem com um efeito similar à morfina, nós temos o sistema endocanabinoide. Ele está envolvido em processos de memória, emoções, inflamatórios, cognitivos, imunes, é um dos maiores sistemas que temos regulando não só o cérebro, como o corpo humano. Os canabinoides agem de alguma forma modulando esse sistema”, diz dos Santos.

Mas, em relação a doenças neurodegenerativas e para autismo, as evidências são escassas e indicam apenas um potencial para controle de sintomas comportamentais, afirma Stuart Neto:

“Há um grande celeuma que demanda cautela. Não temos evidências científicas de que o CBD consegue agir para retardar ou parar a progressão do Alzheimer e do Parkinson. O que temos estudos um pouco melhores é sugerindo que o CBD pode ter um efeito no controle de sintomas comportamentais, como para pacientes mais agitados, agressivos. Para o autismo, é uma condição que uma parte dos pacientes podem ter um difícil controle de comportamento também, então há a possibilidade de ajudar nessa questão. Mas ainda há pouca evidência.”

Fonte: Agência Aids

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